sexta-feira, 10 de julho de 2009

Transporte, sustentabilidade e cidadania

O texto abaixo, escrito por Paulo Saldiva, médico e pesquisador do Laboratório de oluição da Universidade de São Paulo, é uma das mais lúcidas avaliações dos impactos dos automóveis no modo de vida das cidades. A Envolverde publicou este texto em agosto de 2007, mas é tão atual que, para quem já leu, vale reler. Para quem ainda não leu, é fundamental ler.
Dal Marcondes

Transporte, sustentabilidade e cidadania

Por Paulo Saldiva*


O automóvel foi um dos instrumentos que maior transformação exerceu sobre o cenário urbano ao longo das últimas décadas. A possibilidade de enclausurar fontes de energia líquida em abundância em seus tanques conferiu aos veículos uma autonomia cada vez maior. Os novos processos industriais reduziram extraordinariamente os custos de produção, tornando-os cada vez mais acessíveis e numerosos. Sofisticadas técnicas de comercialização agregaram ao veículo valores que ultrapassam a sua finalidade de meio de transporte, tais como indicadores de sofisticação, poder e liberdade. Tal combinação de fatores transformou o automóvel em um dos objetos de consumo mais desejados pelo homem moderno.

Feitas as considerações acima, passo a compartilhar algumas opiniões pessoais sobre o tema do transporte no ambiente urbano com os eventuais leitores do presente texto. Não sei se aqueles que se dedicarem a esta leitura terão o mesmo prazer ao ler que tive ao escrever. Ao longo da minha vida de pesquisador tive muitos convites para escrever textos técnicos, que derivam do lado do cientista, mas poucas chances de escrever como cidadão.

Portanto, previno os leitores de que não encontrarão neste documento a frieza dos dados científicos, e sim uma visão pessoal sobre os impactos do transporte individual sobre a qualidade de vida dos grandes centros urbanos. Por isso, peço encarecidamente que não tenham este documento como algo que pretenda retratar a realidade, mas como uma verdade pessoal que se impregna dos valores e conceitos de quem escreve.

Os impactos da proliferação dos veículos sobre a dinâmica das cidades foram extraordinários. Uma parte substancial do solo das cidades tem sido progressivamente alocada para pavimento de ruas e avenidas, chegando ao ponto de que algo em torno de 30% a 40% da área central das grandes cidades brasileiras é ocupada pela malha viária. As conseqüências da "asfaltização" do solo podem ser sentidas de maneira bastante evidente sob a forma de ilhas de calor que se formam no centro das regiões metropolitanas e ocasionam mudanças de regime e intensidade das chuvas e inundações, favorecidas também pela impermeabilização do solo.

Resumindo, as mudanças climáticas já se fazem notar nas grandes cidades, prenunciando o que poderá acontecer em escala global caso não sejam tomadas medidas corretivas. Os efeitos à saúde já batem às nossas portas sob a forma de aumento da incidência de doenças cardiovasculares nas ondas de calor, de episódios de aumento de doenças infecciosas como a leptospirose e a dengue, bem como das fatalidades que ocorrem em conseqüência de chuvas e desabamentos.

A disponibilidade de transporte individual contribuiu em muito para a criação das megalópoles dos nossos dias. É bastante freqüente percorrermos dezenas de quilômetros para atender aos nossos compromissos de trabalho. As distâncias que separam os nossos lares dos locais onde trabalhamos crescem a ponto de alguns de nós morarmos em uma cidade e trabalharem em outra. Esta situação somente se tornou possível graças ao automóvel e fez com que tenhamos de passar cada vez mais tempo no interior de nossos veículos.

Diante dessa situação, os carros incorporaram instrumentos que antes eram da esfera das nossas salas, tais como ar-condicionado e sofisticados aparelhos de som e imagem. Em alguns casos, os veículos suplantaram o ambiente doméstico.

Nasci numa época "pré-histórica", em que os discos eram comprados e, rapidamente, trazidos para casa para serem ouvidos. Nos dias de hoje, ao comprarmos um "disco", é provável que a sua primeira audição ocorra no interior de nossos carros.

Em nossos automóveis, passamos a ter domínio do que ouvimos, do clima que suportamos, tornamo-nos invisíveis sob um vidro escuro e invulnerável atrás da couraça de blindagens progressivamente mais espessas. A bolha que nos protege também subtrai o convívio com o urbano, reduzindo o nosso acesso aos detalhes e personagens da cidade em que vivemos. Nosso espaço de convivência é invadido pelo carro, a ponto de alguns de nós perdermos a noção de espaço público ao atirarmos o lixo dos nossos carros pela janela, jogando os detritos para um território externo ao qual não pertencemos.

As manifestações de ira que transformam pacíficos cidadãos em seres de outro planeta, ocorridas quando um outro carro comete algum deslize eventual, é um exemplo do híbrido homem-máquina que percorre as nossas ruas. Sermos fechados ou ultrapassados por outrem, ou aprisionados em congestionamentos intermináveis, desperta sentimentos como ira, desejos de vingança, desamparo e frustração. Medidas de pressão arterial ou eletrocardiogramas efetuados durante o ato de dirigir nas grandes cidades indicam claramente que essa prática leva as alterações objetivas de "stress". Essas alterações, associadas à exposição aos poluentes atmosféricos, têm levado ao achado de que indivíduos de risco, quando expostos a um congestionamento de tráfego intenso, têm um risco dobrado para o desenvolvimento do infarto agudo do miocárdio.

Tratemos agora de alguns números. Na última década, a população da cidade de São Paulo aumentou algo como 12%, enquanto a frota automotiva cresceu ao redor de 65% no mesmo período. Temos hoje mais de um carro para cada dois habitantes, indicando que o número de sapatos e pneus circulantes é aproximadamente igual em nossa cidade. Paradoxalmente, a frota de ônibus de nossa cidade permaneceu no mesmo patamar, indicando claramente a franca opção pelo transporte individual. Alguns podem argumentar (com razão!) que a adoção do transporte individual foi uma medida de defesa do cidadão diante de um transporte coletivo de má qualidade. Esta é uma resposta de natureza individual quando o Estado se furta ao dever de prover serviços essenciais e de natureza similar ao pagamento de seguro saúde, escolas privadas e segurança condominial perante a deterioração das redes de saúde, educação e segurança públicas, respectivamente. No entanto, no meu entender, esta é uma parte do problema.

A mudança de modal de transporte, do coletivo para o individual, tirou o poder de reivindicação do transporte coletivo. Tomemos o exemplo das rádios que têm a sua programação baseada nas notícias da nossa cidade. Todas elas possuem uma rede de ouvintes-repórteres, que informam sobre os pontos de maior congestionamento nos horários de pico.

Quando centenas de quilômetros de vias estão congestionadas, a utilidade prática dessas comunicações radiofônicas é limitada, talvez servindo mais a propósitos de conforto psicológico, indicando ao infeliz motorista que ele é um entre milhares de imobilizados. Por acaso, algum de nós já ouviu algum passageiro de ônibus telefonando para as rádios paulistas indicando que o ônibus em que viaja está lotado? Isso indica que a má qualidade do transporte coletivo saiu da agenda dos formadores de opinião. Na mesma linha de pensamento, creio que hoje os buracos das ruas e avenidas provocam uma atenção muito maior do que a péssima qualidade das nossas calçadas, no mais das vezes semelhantes à superfície lunar.

Além das mudanças de comportamento provocadas por sua inegável sedução, a civilização do automóvel levou há problemas ambientais de enormes proporções, com diferentes escalas de influência: local, regional e global.

Comecemos pelo final, a escala global. Quando decidimos "evoluir" do transporte sobre trilhos para automóveis, aumentamos em cerca de 100 vezes a taxa de emissão de CO2 por quilômetro/passageiro transportado. O papel das emissões veiculares na produção de gases de efeito estufa é tão significativo que, no entender da maior parte dos pesquisadores na área, a solução dos problemas relativos às mudanças climáticas que ameaçam o nosso planeta não será possível sem uma drástica mudança dos deslocamentos em direção ao transporte coletivo.

Analisando os impactos das emissões sob o prisma regional, é importante ressaltar o papel que os poluentes emitidos pelos canos de escapamento têm na produção dos precursores de ozônio e demais componentes do smog fotoquímico.

Resumidamente, os grandes aglomerados urbanos podem ser definidos como exportadores de poluentes atmosféricos para regiões que estão localizadas a centenas de quilômetros do ponto de emissão. Ao longo dessa longa trajetória, a radiação solar fornece a energia necessária para a produção de espécies químicas altamente reativas, das quais o ozônio é um dos representantes mais característicos. Assim sendo, o ozônio, que há algumas décadas era considerado um poluente urbano, passou a ser considerado um poluente de regiões remotas, formado que é a partir de reações fotoquímicas que ocorrem a partir de um substrato emitido pelas fontes veiculares dos grandes centros urbanos. Dessa forma, as cidades podem ser vistas como "exportadoras" de poluentes, notadamente aqueles formados por processos fotoquímicos.

Sob o ponto de vista dos efeitos em escala local, é inegável o impacto dos poluentes veiculares sobre a saúde humana, que podem ser resumidos da seguinte forma:
· As variações ambientais de poluentes atmosféricos estão associadas a aumentos significativos de admissões hospitalares e à mortalidade por doenças respiratórias e cardiovasculares;
· Crianças, idosos, indivíduos com doenças respiratórias e cardiovasculares, bem como os segmentos menos favorecidos do ponto de vista socioeconômico, são os alvos preferenciais da ação dos poluentes;
· Mesmo aqueles indivíduos que não se enquadram nos perfis acima expostos também sofrem os efeitos da poluição. Medidas mais sofisticadas de parâmetros biológicos (parâmetros hematológicos ou medidas funcionais dos sistemas respiratórios e cardiovasculares) indicam que todos os habitantes dos grandes centros urbanos apresentam uma inflamação (pulmonar e sistêmica) subclínica, aumento de pressão arterial, maior risco de arritmias e infarto do miocárdio. Esses efeitos adversos aumentam proporcionalmente aos níveis de poluição;
· As alterações acima expostas ao longo dos anos levam à uma redução da expectativa de vida. Por exemplo, estima-se que os níveis atuais de poluição da cidade de São Paulo promovam uma redução de cerca de 1,5 anos de vida devido a três desfechos: câncer do pulmão e vias aéreas superiores, infarto agudo do miocárdio e arritmias e bronquite crônica e asma;
· Os custos dos efeitos crônicos da poluição do ar, estimados no valor dos dias de vida perdidos em função dos efeitos acima descritos, são substanciais. No caso da cidade de São Paulo, as estimativas mais conservadoras apontam para valores de US$ 400 milhões por ano.

Algumas palavras finais talvez sejam oportunas. No momento em que as condições de saneamento básico e o avanço das ciências da saúde permitiram um notável aumento da expectativa e da qualidade de vida, é necessário que tenhamos um olhar mais detalhado para os agentes agressores, que, embora de pequeno monte, podem ter efeitos deletérios significativos para a nossa qualidade de vida. Alimentos pouco saudáveis, ingestão de álcool ou drogas ilícitas e fumo são exemplos desse tipo de situação. Espero que, ao final deste pequeno texto, tenhamos incluído a poluição veicular no rol dos agentes que, pouco a pouco, nos fazem viver menos e com pior qualidade de vida.

(*) Paulo Saldiva é médico e pesquisador do Laboratório de Poluição da Universidade de São Paulo.

Envolverde/Instituto Ethos)post

Um comentário:

Camila Fofa disse...

Adoreii seu texto, :*