Por estes dias estive pensando no prêmio de reportagem sobre biodiversidade que a SOS Mata Atlêntica faz anualmente em parceria com a CI - Conservação Internacional. Isto me fez lembrar que nas últimas edições foram homenageados jornalistas que não são figurinhas conhecidas dos ambientalistas. Um deles, em especial, me chamou muita atenção pela qualidade jornalística, sensibilidade editorial e um olhar muito especial sobre a pauta. No ano passado o jornalista Mauri König autorizou a publicação de seu texto vencedor na Envolverde (Aliás, o mesmo texto foi vencedor do Prêmio da Amcham do Rio de Janeiro). Agora que oferecer esta leitura inspiradora para os visitantes do Blog da Envolverde.
Boa Leitura
Dal Marcondes
A última testemunha: cem anos de resistência
Por Mauri König*
Seu Vicentinho não sabe nem a perna do “a”, mas os 100 anos de vida completados dia 1.º de março lhe deram outros conhecimentos que não se aprende em banco de escola. Ele domina os segredos da longevidade, sabe o tempo certo de colher e de plantar, conhece o poder curativo das plantas, mas não consegue compreender a gana do homem em desafiar a natureza. Nunca se importou muito com isso, até o problema bater à sua porta. E o problema é dos grandes. Seu Vicentinho é uma pedra no caminho da gigante empresarial Votorantim, que há 18 anos tenta erguer uma usina hidrelétrica no rio vizinho, o Ribeira de Iguape.
Vicente Ribeiro de Lima e a Votorantim estão em lados opostos de uma batalha prestes a eclodir no coração da Mata Atlântica. Numa ponta deste cabo-de-guerra estão ambientalistas, índios, caiçaras, religiosos, quilombolas; na outra despontam prefeitos, deputados, vereadores, comerciantes e outros simpatizantes da obra. Cada grupo tenta, a seu modo, influenciar o parecer definitivo que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está na iminência de emitir sobre a construção da usina, que causará impactos diretos em três municípios do Paraná e em dois de São Paulo.
Metido no grupo dos contra, Vicentinho não quer o mesmo fim de vida de tantos ribeirinhos desalojados que agora vivem em favelas de Cerro Azul e da região metropolitana de Curitiba. Ele nasceu num povoado do Vale do Ribeira e fincou raízes em outro, a Ilha Rasa. Ali casou, enviuvou, casou de novo, teve quatro filhos com a primeira mulher, mais dois com a segunda, além de um nascido “no dia curto”, morto 8 dias após o parto. Mora na tapera erguida em 1979 com ajuda do filho Darci, de 54 anos. O chão é de terra batida, o teto de telha de barro sustentado por troncos de madeira, as paredes de gravetos revestidos com barro vermelho.
Nunca teve luxo, só o bastante para chegar aos 100. “Em que outro lugar ele viveria tanto?”, indaga Darci. Porém, o peso da idade chegou, a audição começa a falhar, a voz quase inaudível. As decisões agora cabem a Darci, que nunca faltou ao pai. “A gente sempre pareceu dois piá junto”, compara. O velho concorda, sentado no banquinho, joelho com joelho, mãos acomodadas dentro da touca de lã azul e vermelha. Isso faz tempo. Hoje está magro, barba branca e rala, orelhas salientes na cabeça miúda de cabelos brancos, escassos no cocuruto e desgrenhados nos lados. Vicentinho já fez sua parte, agora é com o filho. A voz tropeça, mas ainda opina.
“Cumé qui pode trancá um rio se isso é coisa da natureza? É até pecado.” Vicentinho está no grupo de moradores a serem atingidos pelo reservatório que ainda não venderam as terras à Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), subsidiária da Votorantim. O maquinário comprado há sete anos não conseguiu lançar um metro cúbico sequer de concreto na usina. À espera da licença ambiental, a CBA foi comprando as terras para adiantar o expediente. O centenário resistente mora a mil metros da futura barragem, 10 quilômetros acima das cidades de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR) e a 300 quilômetros da foz do Ribeira de Iguape.
Com os recursos de quem estudou até os 15 anos, Darci descreve os métodos empregados no início das investidas: “Chegou uns três ou quatro advogado e eles têm o costume de assustá as pessoa, de dizê ansim: a hora que construí a barrage aqui vem bandido, vem ladrão, e um pai de família não pode vivê num lugar ansim”. O tempo deixou os argumentos mais sutis. As novas propostas até agradaram, mas nunca se concretizaram. Até houve um reunião na Ilha Rasa em que representantes da CBA prometeram sete hectares em troca dos dois de Vicentinho, mais uma casa de R$ 20 mil e subsídio para o plantio durante um ano.
Darci teria aceitado na hora, mesmo a contragosto do pai, mas os advogados nunca apareceram para fechar o negócio. “Quem vai combatê contra uma firma? Só outra firma, né?”, justifica. Este papel de opositor tem sido desempenhado por ambientalistas e por parte das populações a serem atingidas. Para eles, o simples anúncio da construção da barragem já deixou o Vale do Ribeira em stand by, cada vez mais empobrecido. A população deixou de investir nas propriedades e o governo deixou de investir em estradas, em educação e moradia. Eis a justificativa da inércia: “Não adianta fazer nada, a barragem vai cobrir tudo mesmo.”
“A CBA se aproveita da falta de regularização fundiária das terras, ocupadas há anos por posseiros, para se apropriar delas”, acusa a coordenadora do Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), Laura Jesus de Moura e Costa. As pessoas foram vendendo as propriedades nos anos todos em que se cogitou sobre a barragem. Quem ficou vive do rio, da água e da terra. “Muitos que venderam as terras hoje passam fome, acabaram se tornando favelados em Cerro Azul, bóias-frias ou operários da CBA na região metropolitana de Curitiba”, diz. Para ela, não houve compensações que garantissem as mesmas condições de vida de antes.
Antes mesmo de construída, a usina já vem causando impactos sociais e econômicos. “A compra de terras pela CBA e a expulsão de muita gente sem qualquer tipo de indenização provocou a queda de renda, aumento do desemprego, êxodo rural, mexeu com comunidades tradicionais, com a cultura e o modo de vida das pessoas”, observa o presidente da Associação Sindical dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira, Adriano Briatori. Os municípios de Adrianópolis e Cerro Azul, onde ficará a maior parte do reservatório, são quase totalmente agrícolas e têm um sistema de produção baseado na agricultura familiar.
Mais de 75% da população de Cerro Azul sobrevive da agricultura de subsistência. “A maioria não sabe fazer outra coisa a não ser trabalhar a terra, pois é descendente de colonos que se instalaram na região há mais de duas gerações”, lembra Briatori. As terras mais produtivas de Cerro Azul, diz ele, estão exatamente nas regiões que serão alagadas, e produzem de tudo, desde culturas de subsistência – arroz, feijão, mandioca, chuchu, milho – até culturas comerciais, como a laranja, a poncã, a sidra. Uma das razões é que dificilmente ocorre geada na época de inverno. Em breve, isso tudo pode ficar debaixo d’água.
O Vale do Ribeira é uma síntese paradoxal. A maior área contínua de Mata Atlântica, um dos mais ricos biomas do Planeta, está permeada por histórias de desventura humana retratadas nos seus bolsões de miséria. Nem tanta beleza natural consegue encobrir o cenário de carência na região que tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região sul-brasileira. Neste contraste entre riqueza natural e miséria humana, o Ribeira de Iguape é a última testemunha de um tempo em que os grandes rios corriam livres.
Este é o principal rio de sua bacia hidrográfica. Dos 470 quilômetros de extensão, 350 correm em São Paulo e 120 no Paraná, banhando 23 cidades paulistas e sete paranaenses, com um total de 450 mil habitantes. Caso raro de rio federal sem barreiras, é o que se chama de rio testemunha. “Todos os outros acabaram e a gente luta para mantê-lo para lembrar de como seriam os demais sem as barragens”, diz Raul Silva Telles do Valle, assessor jurídico do Instituto Sócio-Ambiental, uma das ongs contrárias à usina de Tijuco Alto.
Valle entende que cada bacia hidrográfica deveria ter pelo menos um rio livre, preservado de forma a prestar os serviços ambientais que sempre prestaram. O marco zero do Ribeira fica em Cerro Azul, onde se juntam o Açungui, vindo da região metropolitana de Curitiba, e o Ribeirinha, nascido na região de Ponta Grossa. Sua foz no estuário de Iguape-Cananéia é uma das cinco regiões lagunares mais ricas em biodiversidade do Planeta, segundo a União Internacional de Conservação da Natureza (UICN).
Os expulsos
Norberto Paulista resistiu o quanto pôde, mas acabou vencido pelo cansaço. Ele tinha um próspero comércio de secos e molhados numa região remota, mas sem concorrência, em Cerro Azul, no Vale do Ribeira. Diversas vezes a CBA botou preço na propriedade. Norberto recusou todas. Era preciso evacuar a área para o reservatório da hidrelétrica Tijuco Alto, então a CBA foi comprando as terras vizinhas. Sem freguesia, a mercearia morreu à míngua. No sobrado às margens da estrada poeirenta hoje funciona a Drink’s Boate Show, das irmãs Carmenluci e Maricléia Prado Gonçalves.
Ali Norberto começou a vida aos 20 anos, em 1970, ao sair da casa da mãe num povoado vizinho. O mercadinho vingou até 1997, quando os fregueses sumiram de vez. Quem saía levava o que podia das casas. “Ficou como o Iraque na época da guerra”, compara Norberto. Ele acabou vendendo meio alqueire de terra e o sobrado de 212 metros quadrados por R$ 42 mil, em 2005. As dívidas obrigaram-no a vender também o seu xodó, uma caminhonete D-10. Hoje, tenta se reerguer. Produz laranja em dois sítios e tem umas 30 cabeças de gado. As novas donas do sobrado sabem que de uma hora para outra podem ter de sair.
Quem toca o negócio é Maricléia, enquanto a irmã trabalha numa boate na Espanha. Elas já haviam alugado o sobrado em 1999. Gostaram tanto que juntaram o dinheiro de três temporadas na Espanha para comprá-lo. Das oito garotas de programa da Drink’s Boate Show, três moram ali e as outras só trabalham nos fins de semana. O lugar é isolado, mas Maricléia diz ter clientela fiel. “Era o sonho dela”, conta a irmã. Investiram em reformas e agora não saem do lugar por menos de R$ 200 mil de indenização. Elas têm o que negociar, ao contrário dos ribeirinhos que saíram dali com uma mão na frente e outra atrás.
Lucidório Meri, o Neno Meri, de 64 anos, não fazia outra coisa senão trabalhar a terra. Há seis anos vendeu à CBA o alqueire de terra onde tinha um bar e plantava laranja, feijão e milho. Hoje, tem um barraco num terreno de 360 metros quadrados, 66 vezes menor do que sua antiga área, às margens do Rio Ribeira, onde dois filhos ficaram para cultivar o retalho de terra que restou. Agora Neno Meri vive do plantio de feijão e milho na propriedade dos outros. “A vida piorou muito”, lamenta. Recentemente, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e ficou com uma das mãos amortecidas. “Sorte que é a esquerda, porque a direita é para pegar a enxada.”
Menos sorte tiveram Antonio Paliano, 48 anos, e Sidinei Paes, de 25. Perderam o emprego quando as terras que cultivavam no povoado de Mato Preto foram vendidas. Agora vivem de bicos e moram numa favela que começa a se formar num dos morros de Cerro Azul. Sidinei chegou há cinco anos e Antonio, há três. O primeiro tem dois filhos e o segundo, seis. Ali há mais quatro famílias vindas da mesma região que não figuram na pesquisa encomendada pela CBA para contrapor as afirmações de ambientalistas de que existiriam muitas famílias de não-proprietários vivendo em favelas por causa do processo de compra de terras.
Dois levantamentos feitos pela CNEC Engenharia descobriram sete famílias em bairros populares de Ribeira, Cerro Azul e Adrianópolis. A intenção é identificar os posseiros, meeiros ou arrendatários para incluir todos os atingidos pelo projeto no programa de compensações da CBA. Saindo a licença da usina, as famílias das áreas a serem alagadas terão três opções: 1) a venda direta, incluindo as benfeitorias e indenizações sobre a atividade econômica desenvolvida; 2) troca por outro terreno com benfeitorias; 3) vender parte do terreno e continuar nas áreas onde se encontram, dependendo da localização e da parte a ser alagada.
A CBA assegura que também serão beneficiados aqueles que eram ou são arrendatários, meeiros, posseiros, ou que moravam de favor nas terras adquiridas pela CBA. “Eles vão receber terras e o título de propriedade, com todas as benfeitorias, tornando-se finalmente proprietários”, informa a empresa. Contudo, a subsidiária do grupo Votorantim não fala nada sobre as pessoas que já saíram da área de abrangência da usina de Tijuco Alto. Segundo estimativa do Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), mais de 200 famílias desalojadas pela CBA vivem em más condições de vida na região metropolitana de Curitiba, em cidades como Colombo, Almirante Tamandaré e Tijucas do Sul.
Privatização das águas
A construção da barragem de Tijuco Alto suscita a discussão em torno do uso e da finalidade do rio e da energia elétrica produzida no Brasil. “Quando você represa o rio, há um gestor do espaço e da água, e isso é privatização”, diz a coordenadora Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), Laura Jesus de Moura e Costa. “Esta hidrelétrica não é uma necessidade do Paraná ou de São Paulo, é uma necessidade da CBA (Companhia Brasileira de Alumínio)”, enfatiza.
Para o assessor jurídico do Instituto Socioambiental, Raul Silva Telles do Valle, a água é um bem público e seu uso deve ser universalizado. “Tijuco Alto é exemplo de um modelo energético que beneficia determinados grupos e traz poucos benefícios à região”, diz. Ele teme que o licenciamento abra precedente para outras três hidrelétricas previstas pela Companhia Energética do Estado de São Paulo (Cesp) no Ribeira: Itaoca, Funil e Batatais.
A coordenadora do Cedea teme ainda pelos riscos ao Aqüífero Karst, rio subterrâneo de 5.740 quilômetros quadrados que abrange os municípios de Campo Magro, Campo Largo, Almirante Tamandaré, Itaperuçu, Rio Branco do Sul, Colombo, Bocaiúva do Sul, Cerro Azul, Tunas do Paraná, Doutor Ulisses e Adrianópolis, Castro e Ponta Grossa. Esta é a grande fonte para o futuro abastecimento da região metropolitana de Curitiba.
“Não sabemos se o solo (de rochas calcárias) resistirá ao peso de tanta água represada, causando um efeito dominó sobre as cavernas da região”, diz Laura. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da CBA, as cavernas que serão alagadas são buracos de pequena expressão. “É descartável a tese de que poderá haver vazamentos de água no entorno do reservatório”, assegura a empresa.
O Rima descarta, ainda, interferências no modo de vida das comunidades ribeirinhas porque o fluxo de água não será alterado. O vertedouro foi projetado para dar vazão a cheias que podem acontecer a cada dez mil anos. As vazões do Ribeira são medidas desde 1931 e o volume de água nunca será maior do que o volume natural da cheia.
O estudo indica também que a área do futuro reservatório não possui vegetação primária, é uma das mais degradadas do Vale do Ribeira com predomínio de pastagens e cultura de pínus, que já vem descaracterizando a geografia regional. Inconformada com os argumentos, Laura lança uma pergunta: “O que são 50 ou 70 anos de vida útil de um reservatório se comparados com recursos naturais e espécies que dão benefício sustentável ao país há séculos e que se não forem destruídos podem servir por muito mais tempo ainda?”
Um presente para a maioridade (Segunda Parte da reportagem)
Há 18 anos, o Grupo Votorantim tenta erguer uma usina hidrelétrica no Vale do Ribeira, na divisa do Paraná com São Paulo. O projeto completou a maioridade em maio e pode finalmente ser presenteado: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está prestes a anunciar o parecer definitivo sobre a construção da obra. Pesa em favor da Companhia Brasileira do Alumínio (CBA), subsidiária da holding Votorantim, as metas de aumento da oferta de energia elétrica estabelecidas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Se aprovada, Tijuco Alto será a décima nona hidrelétrica do Grupo Votorantim. Prevista para ser erguida dez quilômetros acima das cidades de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), ela foi planejada para aumentar a oferta de energia elétrica do complexo metalúrgico da CBA na cidade de Alumínio (SP). Terá potência de 129,7 megawatts, reservatório de 56,5 quilômetros quadrados, barragem com 142 metros de altura e extensão de 539 metros de lado a lado do rio. A energia será transmitida pelo linhão de Furnas.
A CBA pretende iniciar a obra até 2009 e concluí-la em quatro anos, pondo fim à longa espera. O primeiro pedido de licenciamento foi em maio de 1989. As licenças prévias foram concedidas em junho de 1994 pela Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo e em fevereiro do ano seguinte pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP). Contudo, o licenciamento foi anulado por uma ação civil pública amparada por uma mobilização de deputados, entidades ambientalistas e lideranças de comunidades do Vale do Ribeira.
Em despacho de dezembro de 1999, o Ministério Público julga que o licenciamento não poderia ser estadual, definindo a competência para o âmbito federal, ou seja, o Ibama. Antes disso, porém, em 1997 a CBA já apresentara ao Ibama um pedido de licenciamento. O pedido é negado em 2003 por insuficiências no Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Em agosto de 2004, a CBA contrata o Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores (CNEC) e ganha do Ibama autorização para reiniciar os estudos. Em fevereiro de 2005 é aberto novo processo de licenciamento e em outubro são apresentados os Estudos de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima). Enquanto aguardava a licença ambiental, cujo parecer do Ibama pode sair a qualquer momento, a CBA começou a adquirir as terras dos ribeirinhos.
Dos R$ 500 milhões de custos da usina, R$ 100 milhões irão para programas socioambientais, que incluem reassentamento e compensação das mais de 500 famílias que ainda vivem nas áreas a serem alagadas pelo reservatório. Em reuniões para angariar adesões à instalação da hidrelétrica, a CBA conseguiu cinco mil assinaturas em Cerro Azul, Doutor Ulisses e Adrianópolis, no Paraná, e Ribeira e Itapirapuã Paulista, em São Paulo. Não só isso, está recolhendo declarações de apoio dos prefeitos e vereadores da região.
Em abril, os prefeitos e os presidentes das câmaras municipais dos municípios afetados pela usina estiveram na sede do Ibama, em Brasília, para reivindicar a licença ambiental. “Nossa economia está paralisada e poderá se desenvolver com Tijuco Alto por causa dos empregos que irá gerar e do desenvolvimento dos serviços, do turismo e da agricultura familiar”, diz o prefeito de Adrianópolis, Osmar Maia. “O Vale do Ribeira está esquecido e pobre, a barragem é uma oportunidade de desenvolvimento”, enfatiza o prefeito de Doutor Ulisses, Pedro Anselmo. “Precisamos de empregos, e os royalties poderão ser investidos em educação e saúde”, complementa o prefeito de Cerro Azul, Dalton Luiz de Moura e Costa.
Quando em operação, Tijuco Alto vai gerar 60 empregos diretos. Durante a construção, no pico das obras serão abertas 1.750 vagas de trabalho e mais 400 empregos indiretos. A CBA diz que pelo menos dois terços da mão-de-obra serão contratados na região. O problema, segundo o presidente da Associação Sindical dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira, Adriano Briatori, é que estas pessoas são agricultores e não barrageiros. “O que elas querem é continuar cultivando a terra, não fazendo massa de concreto.”
À frente da luta contra a hidrelétrica, o Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea) denuncia o abuso do poder econômico. No relatório de suas audiências públicas, faz ao Ibama a seguinte recomendação: “Que seja investigada a existência de corrupção no sentido de a CBA estar negociando o apoio das prefeituras nos municípios a serem atingidos pela barragem, dando em troca cimento e outros materiais de construção civil.”
Tem gente, tem plantas, tem bichos...
Não só gente, mas também plantas e bichos estão no caminho da usina hidrelétrica de Tijuco Alto. Do nascedouro do Rio Ribeira ao seu estuário – percurso de 470 quilômetros – moram 2.456 famílias de caiçaras, 60 comunidades de quilombolas (presentes na região desde o século 18) e os milenares habitantes de 12 aldeias guarani.
Ali vivem ainda 68 espécies ameaçadas de extinção, como o primata mono-carvoeiro, a onça-pintada, o veado campeiro e o papagaio-de-cara-roxa, além de 42 espécies endêmicas (só encontradas na região), como o beija-flor rajado e o mico-leão-da-cara-preta.
Ecologistas atribuem ao patrimônio cultural e ao conhecimento tradicional um valor igual à riqueza ambiental. Os povos ribeirinhos têm um modo de vida responsável com a natureza, diz Nilto Ignácio Tatto, coordenador do Instituto Socioambiental (ISA), organização não-governamental que faz programas de geração de renda, educação e cultura no Vale do Ribeira.
É graças a essas comunidades, diz Tatto, que este é um dos trechos mais preservados de toda a região costeira do Brasil, abrigando 21% de vegetação contínua do que ainda resta da Mata Atlântica, declarada patrimônio natural da humanidade pela Unesco em 1999.
O vale tem dois milhões hectares de floresta, 150 mil de restinga, 17 mil de manguezais e mais de 270 cavernas cadastradas. A região tem um complexo de 24 unidades de conservação, com mais de 1,4 milhão de hectares. Ali está a maior quantidade de sítios tombados do estado de São Paulo (158), entre eles 75 sítios líticos (de pedra), 82 sítios cerâmicos, 12 sambaquis, 12 em abrigos/grutas e três cemitérios indígenas.
A opção pela energia que vem das barragens
Desde que aprendeu a domar águas revoltas, o Brasil não pára de estancar os rios para gerar energia. São 587 hidrelétricas em operação, média de uma nova usina a cada três meses desde que a primeira foi erguida em 1883 no Ribeirão do Inferno, afluente do Rio Jequitinhonha (MG). O setor ganhou importância e hoje 82,8% de toda energia consumida no país vêm de fontes hidráulicas, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Até os anos 1990, o método “sai da frente” sedimentou as barragens com o argumento do progresso e do interesse público. Nasceram, então, gigantes como Itaipu e Tucuruí, numa época em que o governo militar exibia cartazes no exterior dizendo-se de braços abertos aos dólares e à poluição primeiro-mundista. Assim, os reservatórios engoliram 34 mil quilômetros quadrados, ou 0,4% do território brasileiro. Não parece muito, mas é como se um país inteiro igual à Bélgica, ou Taiwan, tivesse submergido para que pudéssemos tirar das águas nossa energia.
A Constituição de 1988 trouxe a exigência de estudos de impactos ambientais para as hidrelétricas. Não só isso, a democracia descortinou o horizonte holístico e sua visão integrada do homem com a natureza, pondo desenvolvimentistas e ambientalistas em campos opostos. Estes conseguiram barrar muitas barragens, mas os adversários ganharam mais fôlego com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em março pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A meta é aumentar a oferta de energia elétrica em 12.300 megawatts até 2012.
Na fila do PAC estão 41 projetos de 24,6 mil megawatts, 20 deles na carteira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com custos de R$ 20,3 bilhões. A capacidade instalada das 587 usinas em operação chega a 74 mil megawatts, segundo a Aneel. Isso representa 28,4% do potencial hidrelétrico no país, estimado pela Eletrobrás em 260,1 mil megawatts. Metade dessa possibilidade energética fica na região amazônica, sobretudo nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós. Outros 29% correm nas bacias dos rios Paraná e Uruguai.
* Mauri König é repórter do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. Com esta reportagem ele foi vencedor do Prêmio de Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica 2008, da Aliança para a Conservação da Mata Atlântica (parceria entre as ONGs Conservação Internacional e Fundação SOS Mata Atlântica) e do Prêmio Brasil Ambiental 2008, promovido pela Câmara de Comércio Americana (Amcham).
Mauri König é autor do livro "Narrativas de um correspondente de rua", lançado pela editora do Instituto Cultural de Jornalistas do Paraná.
(Envolverde/Gazeta do Povo (PR))
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