Dal Marcondes
Porque os cidadãos vestem seus carros como se fossem armaduras à prova de qualquer repressão? Soltam os instintos e passam por cima de conceitos que, fora do carro, não são capazes de racionalmente atropelar?
Cena 1: O carro vem e estaciona sobre a faixa de pedestre em uma esquina movimentada. O pedestre que aguarda fechar o sinal reclama:
- O senhor vai estacionar sobre a faixa?
Distinto, cabelos brancos, o motorista desce do carro, olha para os lados e responde:
- Infelizmente sim. Não há outro lugar para parar.
Ele segue seu caminho sem preocupar-se com o transtorno que causa a seus parceiros de cidadania nesta cidade. Não lhe roça a culpa.
Cena 2: Diariamente vou a pé para meu escritório. Caminho pelas mau-cuidadas calçadas da rua Madalena, na Vila de mesmo nome que se orgulha de abrigar artistas, intelectuais, cidadãos de primeira categoria em uma cidade de muitas carência. Nesta rua vive também um proprietário de um Fiat Tipo preto. Um carro que sem dúvida parece ser de alguém comportado. Uma pessoa comum, não fosse por seu péssimo hábito de não fechar o portão de sua casa, obstruindo completamente a calçada.
Nunca o vejo, apenas o carro na garagem (com portões escancarados sobre a calçada) ou a garagem sem carro (com os portões escancarados sobre a calçada). Ele age como se não tivesse vizinhos e se comporta como se viver em comunidade não fosse um fato que impõe obrigações em relação aos outros. Aqueles que vivem na mesma cidade, na mesma rua, na mesma calçada que ele.
Cena 3: Fomos, eu e minha mulher, ver a exposição do Picasso na Oca, no Ibirapuera em um sábado. Mostra belíssima. Coisa de primeiro mundo. Sábado tranqüilo, de sol, São Paulo acende suas luzes esplendorosas no final da tarde. Caminhamos horas por obras magníficas e depois saímos a passear pelas alamedas do parque. Por fim, resolvemos ir embora.
Nosso carro ficou estacionado a poucas quadras. Saímos e fomos atravessar a avenida Pedro Álvares Cabral em frente à Assembléia Legislativa do Estado. Uma das áreas "Cartão Postal" da cidade. Aguardamos os sinal verde para pedestres e seguimos. Vermelho para os carros, um Mercedes moderno, vidros pretos, avança sobre a faixa de pedestres à nossa frente. Reclamo:
- Ohhh!! Respeite a faixa!!
Dois homens jovens dentro do carro. O motorista faz o carro saltar em nossa direção em uma ameaça de atropelamento. Usa seu carro de primeiro mundo como um cidadão de 5a categoria. Bem vestidos e rindo, seguem suas vidas impunes.
São cenas corriqueiras da cidade de São Paulo. Uma cidade onde o trânsito perdeu o sentido de cidadania. Cenas que precisam tornar-se raras.
Precisamos respeitar as faixas de pedestres, precisamos respeitar os sinais fechados, precisamos parar de buzinar à noite e acordar as pessoas. Precisamos nos comportar como partícipes de uma cidade com milhões de habitantes.
Quem precisa de um guarda para coibir seu comportamento não é um cidadão, pelo contrário. Uma vez perguntei a um destes contumazes infratores do trânsito:
- Quando você vai à Europa ou aos Estados Unidos você dirige da mesma forma que em São Paulo?
A resposta me surpreendeu:
- Claro que não! Lá isto pode dar até cadeia!
* O autor é jornalista, diretor da Envolverde (www.envolverde.com.br)
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