quinta-feira, 8 de abril de 2010
Adoniran Barbosa: a história de "Trem das Onze"
No centenário de nosso maior sambista, “Trem das Onze” ainda ecoa por estações que não existem mais, por estúdios de gravação empoeirados e, principalmente, na memória afetiva da cidade que o sambista tantas vezes cantou
por Camilo Vannuchi - Revista Época
Caixinha de fósforos nas mãos, Adoniran aproveitava a viagem para compor. Os versos surgiam entre uma estação e outra, ritmados pela cadência do vagão. Especialista em criar tipos urbanos, o artista, nascido em Valinhos em 6 de agosto de 1910, tirava samba dos trilhos. E traduzia, na nova música, a história de um rapaz que tinha de deixar a namorada sozinha para voltar para casa e cuidar de sua mãe. “Se eu perder esse trem, que sai agora às 11 horas, só amanhã de manhã.” Um dos bairros atravessados pela ferrovia acabou entrando na letra por acaso. Era preciso encontrar uma rima. “Manhã... manhã... Jaçanã! Achei bonito o nome”, confessou Adoniran em uma entrevista de 1974, dez anos depois do lançamento da canção que é a cara de São Paulo.
Adoniran barbosa faria 100 anos em agosto. E ficaria todo prosa ao saber que “Trem das Onze” ainda ocupa lugar de destaque na predileção dos paulistanos. Toda terça-feira, uma centena de pessoas vai ao Bar Brahma assistir aos Demônios da Garoa, que sempre encerram o show com seu samba mais famoso. Sentado em uma das mesas, Adoniran abriria um sorriso, pediria um cigarro “emprestado” (para fumar na calçada, é claro), ajeitaria a gravata-borboleta e, no repique da inseparável caixinha de fósforos, cantaria com a plateia. Em tempos de Beyoncé e “Rebolation”, ele descobriria que seus versos continuam reverenciados como um hino. Seis anos atrás, por exemplo, os 450 anos de São Paulo inspiraram uma campanha da TV Globo para eleger a música “com a cara da cidade”. O povo escolheu “Trem das Onze”, uma senhora de 40 anos que, até então, já tinha sido gravada em francês, espanhol, italiano e hebraico.
A canção surgiu em setembro de 1964, gravada pelos Demônios da Garoa em LP e em compacto simples (com “Chum Chim Chum”, de Heitor Carillo, no lado B). Fazia 13 anos que o grupo lançava músicas de Adoniran, então uma espécie de Chico Anysio do rádio, intérprete de personagens populares como o malandro Charutinho em programas humorísticos. Um desses programas, o Histórias das Malocas, era líder de audiência nas noites de sexta-feira. Desde 1955, com o sucesso de “Saudosa Maloca”, o grupo se tornara intérprete oficial desse paulista de Valinhos, nascido João Rubinato.
O toque de Midas teria sido a iniciativa dos Demônios de transformar tábua em “táuba” e exagerar os erros de português – que logo virariam rubricas de Adoniran. Até aquele momento, o compositor ainda não havia adotado o estilo “narfabeto”. “Foi ideia dos Demônios”, afirma Roberto Barbosa, o Canhotinho, que aos 70 anos ainda toca cavaquinho no quinteto. “Estragaram minha música”, Adoniran teria dito, mudando de opinião após a consagração da faixa e incorporando coisas como “nóis fumos” e “despois” nos sambas seguintes. “Foi um casamento que deu certo”, diz Canhotinho. “Os Demônios não estariam na ativa até hoje sem as músicas de Adoniran, e ele não teria vingado como compositor se não tivesse sido gravado pelo conjunto.”
No período de nove anos compreendido entre “Saudosa Maloca” e “Trem das Onze”, os Demônios gravaram 14 composições dele, como “Iracema” e “As Mariposas”. “Por mais de vinte anos, foi com os Demônios que a gente conheceu Adoniran”, diz Assis Ângelo, biógrafo do grupo. Apenas em 1974 o compositor lançaria seu primeiro álbum como cantor. Na interpretação do quinteto, suas faixas eram tão bem-sucedidas que, em 1964, o diretor da gravadora Chantecler fez uma única exigência ao fechar contrato. “Quero relançar as coisas do Adoniran”, disse Braz Baccarin, hoje com 79 anos. “E preciso de uma música inédita.” Arnaldo Rosa (morto em 2000), então líder dos Demônios, lembrou-se de um samba que Adoniran oferecera a ele dois anos antes, quando o grupo se preparava para viajar para o Uruguai e a Argentina.
“A gente ensaiava no apartamento do Toninho (violonista, morto em 2005), e os compositores vinham nos mostrar repertório”, diz o pandeirista Cláudio Rosa, 77 anos, irmão do líder Arnaldo Rosa. Adoniran, que não tocava nenhum instrumento, apenas cantava, delegando aos músicos a função de criar a harmonia e o arranjo. As introduções repletas de “quais quais quais” eram obra dos Demônios, como o “pascalingudum” de “Trem das Onze”. “Não gostei daquela letra”, afirma Narciso, 75 anos, também violonista do conjunto. “Eu tinha sido uma criança rebelde, apanhava da mãe, e achei muito fraca essa história de ir para casa porque a ‘véia’ está esperando.” Mas os colegas acreditaram no samba, e, pela primeira vez, Adoniran ficaria conhecido nacionalmente.
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